Álvares de Azevedo VI

A lagartixa


A lagartixa ao sol ardente vive
E fazendo verão o corpo espicha:
O clarão de teus olhos me dá vida,
Tu és o sol e eu sou a lagartixa.


Amo-te como o vinho e como o sono,
Tu és meu copo e amoroso leito...
Mas teu néctar de amor jamais se esgota,
Travesseiro não há como teu peito.


Posso agora viver: para coroas
Não preciso no prado colher flores;
Engrinaldo melhor a minha fronte
Nas rosas mais gentis de teus amores


Vale todo um harém a minha bela,
Em fazer-me ditoso ela capricha...
Vivo ao sol de seus olhos namorados,
Como ao sol de verão a lagartixa.


À T...


Amoroso palor meu rosto inunda,
Mórbida languidez me banha os olhos,
Ardem sem sono as pálpebras doridas,
Convulsivo tremor meu corpo vibra:
Quanto sofro por ti! Nas longas noites
Adoeço de amor e de desejos
E nos meus olhos desmaiando passa
A imagem voluptuosa da ventura...
Eu sinto-a de paixão encher a brisa,
Embalsamar a noite e o céu sem nuvens,
E ela mesma suave descorando
Os alvacentos véus soltar do colo,
Cheirosas flores desparzir sorrindo
Da mágica cintura.
Sinto na fronte pétalas de flores,
Sinto-as nos lábios e de amor suspiro.
Mas flores e perfumes embriagam,
E no fogo da febre, e em meu delírio
Embebem na minh'alma enamorada
Delicioso veneno
Estrela de mistério! Em tua fronte
Os céus revela, e mostra-me na terra,
Como um anjo que dorme, a tua imagem
E teus encantos onde amor estende
Nessa morena tez a cor de rosa
Meu amor, minha vida, eu sofro tanto!
O fogo de teus olhos me fascina,
O langor de teus olhos me enlanguesce,
Cada suspiro que te abala o seio
Vem no meu peito enlouquecer minh'alma!
Ah! vem, pálida virgem, se tens pena
De quem morre por ti, e morre amando,
Dá vida em teu alento à minha vida,
Une nos lábios meus minh'alma à tua!
Eu quero ao pé de ti sentir o mundo
Na tua alma infantil; na tua fronte
Beijar a luz de Deus; nos teus suspiros
Sentir as vibrações do paraíso;
E a teus pés, de joelhos, crer ainda
Que não mente o amor que um anjo inspira,
Que eu posso na tu'alma ser ditoso,
Beijar-te nos cabelos soluçando
E no teu seio ser feliz morrendo!


Adeus, meus sonhos!


Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro!
Não levo da existência uma saudade!
E tanta vida que meu peito enchia
Morreu na minha triste mocidade!
Misérrimo! Votei meus pobres dias
À sina doida de um amor sem fruto,
E minh'alma na treva agora dorme
Como um olhar que a morte envolve em luto.
Que me resta, meu Deus?
Morra comigo
A estrela de meus cândidos amores,
Já não vejo no meu peito morto
Um punhado sequer de murchas flores!


Ai, Jesus!


Ai, Jesus! Não vês que gemo,
Que desmaio de paixão
Pelos teus olhos azuis?
Que empalideço, que tremo,
Que me expira o coração?
Ai, Jesus! Que por um olhar, donzela,
Eu poderia morrer
Dos teus olhos pela luz?
Que morte! Que morte bela!
Antes seria viver!
Ai, Jesus! Que por um beijo perdido
Eu de gozo morreria
Em teus níveos seios nus?
Que no oceano dum gemido
Minh'alma se afogaria? Ai, Jesus!



Amor


Quand la mort est si belle, Il est doux de mourir.
V. Hugo


Amemos! Quero de amor
Viver no teu coração!
Sofrer e amar essa dor
Que desmaia de paixão!
Na tu'alma, em teus encantos
E na tua palidez
E nos teus ardentes prantos
Suspirar de languidez!
Quero em teus lábio beber
Os teus amores do céu,
Quero em teu seio morrer
No enlevo do seio teu!
Quero viver d'esperança,
Quero tremer e sentir!
Na tua cheirosa trança
Quero sonhar e dormir!
Vem, anjo, minha donzela,
Minha'alma, meu coração!
Que noite, que noite bela!
Como é doce a viração!
E entre os suspiros do vento
Da noite ao mole frescor,
Quero viver um momento,
Morrer contigo de amor!


Anjinho


And from her fresh and unpolluted flesh
May violets spring!
HAMLET


Não chorem! que não morreu!
Era um anjinho do céu
Que um outro anjinho chamou!
Era uma luz peregrina,
Era uma estrela divina
Que ao firmamento voou!


Pobre criança! dormia:
A beleza reluzia
No carmim da face dela!
Tinha uns olhos que choravam,
Tinha uns risos que encantavam!
Ai meu Deus! era tão bela!


Um anjo d'asas azuis,
Todo vestido de luz,
Sussurrou-lhe um segredo
Os mistérios de outra vida!
E a criança adormecida
Sorria de se ir tão cedo!


Tão cedo! que ainda o mundo
O lábio visguento, imundo,
Lhe não passara na roupa!
Que só o vento do céu
Batia do barco seu
As velas d'ouro da roupa!


Tão cedo! que o vestuário
Levou do anjo solitário
Que velava seu dormir!
Que lhe beijava risonho
E essa florzinha no sonho
Toda orvalhava no abrir!


Não chorem! lembro-me ainda
Como a criança era linda
No frio da facezinha!
Com seus lábios azulados,
Com os seus olhos vidrados
Como de morta andorinha!


Pobrezinho! o que sofreu!
Como convulso tremeu
Na febre dessa agonia!
Nem gemia o anjo lindo,
Só os olhos expandindo
Olhar alguém parecia!


Era um canto de esperança
Que embalava essa criança!
Alguma estrela perdida,
Do céu c'roada donzela,
Toda a chorar-se por ela
Que a chamava doutra vida!


Não chorem, que não morreu!
Que era um anjinho do céu
Que um outro anjinho chamou!
Era uma luz peregrina,
Era uma estrela divina
Que ao firmamento voou!


Era uma alma que dormia
Da noite na ventania,
E que uma fada acordou!
Era uma flor de palmeira
Que um céu d'inverno murchou!


Não chores, abandonada
Pela rosa perfumada!
Tendo no lábio um sorriso
Ela foi-se mergulhar
— Como pérola no mar —
Nos sonhos do paraíso!


Não chores! chora o jardim
Quando murchado o jasmim
Sobre o seio lhe pendeu?
E pranteia a noite bela
Pelo astro, pela donzela
Morta na terra ou no céu?


Choram as flores no afã,
Quando a ave da manhã
Estremece, cai, esfria?
Chora a onda quando vê
A boiar uma irerê
Morta ao sol do meio-dia?


Não chores! que não morreu!
Era um anjinho do céu
Que um outro anjinho chamou!
Era uma luz peregrina,
Era uma estrela divina
Que ao firmamento voou!


Publicado: Poesias de Manuel Antônio Álvares de Azevedo, 1853


Anjos do céu


I


Tenho um seio que delira
Como as tuas harmonias!
Que treme quando suspira,
Que geme como gemias!



II


Tenho músicas ardentes,
Ais do meu amor insano,
Que palpitam mais dormentes
Do que os sons do teu piano!



III


Tenho cordas argentinas
Que a noite faz acordar,
Como as nuvens peregrinas
Das gaivotas do alto mar!



IV


Como a teus dedos lindinhos
O teu piano gemeu,
Vibra-me o seio aos dedinhos
Dos anjos loiros do céu!



V


Vibra à noite do mistério,
Se o banha o frouxo luar,
Se passa teu rosto aéreo
No vaporoso sonhar!



VI


Como tremem teus dedinhos
O saudoso piano teu,
Vibram-me n'alma os anjinhos,
Os anjos loiros do céu!


Anjos do mar


As ondas são anjos que dormem no mar,
Que tremem, palpitam, banhados de luz...
São anjos que dormem, a rir e sonhar
E em leito d'escuma revolvem-se nus!


E quando de noite vem pálida a lua
Seus raios incertos tremer, pratear,
E a trança luzente da nuvem flutua,
As ondas são anjos que dormem no mar!


Que dormem, que sonham — e o vento dos céus
Vem tépido à noite nos seios beijar!
São meigos anjinhos, são filhos de Deus,
Que ao fresco se embalam do seio do mar!


E quando nas águas os ventos suspiram,
São puros fervores de ventos e mar:
São beijos que queimam... e as noites deliram,
E os pobres anjinhos estão a chorar!


Ai! quando tu sentes dos mares na flor
Os ventos e vagas gemer, palpitar,
Porque não consentes, num beijo de amor,
Que eu diga-te os sonhos dos anjos do mar!


C...


Oh! não tremas! que este olhar, este braço te digam
o que é inefável — abandonar-se sem receio, inebriar-se
de uma voluptuosidade que deve ser eterna.
GOETHE. Fausto.


Sim — coroemos as noites
Com as rosas do himeneu;
Entre flores de laranja
Serás minha e serei teu!


Sim — quero em leito de flores
Tuas mãos dentro das minhas...
Mas os círios dos amores
Sejam só as estrelinhas.


Por incenso os teus perfumes,
Suspiros por oração,
E por lágrimas, somente
As lágrimas da paixão!


Dos véus da noiva só tenhas
Dos cílios o negro véu;
Basta do colo o cetim
Para as Madonas do céu!


Eu soltarei-te os cabelos...
Quero em teu colo sonhar!
Hei de embalar-te... do leito
Seja lâmpada o luar!


Sim — coroemos as noites
Da laranjeira co'a flor;
Adormeçamos num templo,
Mas seja o templo do amor.


É doce amar como os anjos
Da ventura no himeneu:
Minha noiva, ou minh'amante
Vem dormir no peito meu!


Dá-me um beijo — abre teus olhos
Por entre esse úmido véu:
Se na terra és minha amante,
És a minha alma no céu!


Canção da sesta (LXI)


Se teus cílios de sereia
Te dão um ar peregrino,
Que longe é de ser divino,
Fada do olhar que me enleia.


Eu te adoro, ternamente,
Minha terrível paixão!
Sempre com a devoção
Que tem pelo ídolo um crente.


As florestas e o deserto
Perfumam-te as tranças rudes;
Tens na fronte as atitudes,
Do que é enigmático e incerto.


Como em torno do incensário,
Em teu corpo o perfume arde;
E fascinas como a tarde,
Ninfa do ar mais funerário.


Ah, o filtro, mesmo se forte,
Não vale tua delícia,
E conheces a carícia
Que faz reviver a morte!


Tens ancas muito amorosas
De teus seios e teus rins,
E arrebatas os coxins,
Com flexões tão langorosas.


Vezes, para ser vencida
Tua raiva de mistério
Prodigalizas, de ar sério,
O beijo como a mordida;


Tu me laceras, morena,
Com riso de algum despeito,
E pões depois no meu peito
Teu olho, lua serena.


Sob teu sapato rendado,
Sob os teus pés que são seda,
Ponho de alma sempre leda
O meu gênio com meu fado.


Minha alma por ti se cura,
Por ti que és o lume a e cor!
És a explosão do calor
Em minha Sibéria escura.



Cantiga


I


Em um castelo doirado
Dorme encantada donzela;
Nasceu — e vive dormindo
— Dorme tudo junto dela.


Adormeceu-a sonhando
Um feiticeiro condão,
E dormem no seio dela
As rosas do coração.


Dorme a lâmpada argentina
Defronte do leito seu:
Noite a noite a lua triste
Dorme pálida no céu.


Voam os sonhos errantes
Do leito sob o dossel,
E suspiram no alaúde
As notas do menestrel.


E no castelo, sozinha,
Dorme encantada donzela:
Nasceu — e vive dormindo
— Dorme tudo junto dela.


Dormem cheirosas abrindo
As roseiras em botão,
E dormem no seio dela
As rosas do coração!



II


A donzela adormecida
É a tua alma santinha,
Que não sonha nas saudades
E nos amores da minha


— Nos meus amores que velam
Debaixo do teu dossel,
E suspiram no alaúde
As notas do menestrel!


Acorda, minha donzela!
Foi-se a lua — eis a manhã
E nos céus da primavera
A aurora é tua irmã!


Abriram no vale as flores
Sorrindo na fresquidão:
Entre as rosas da campina
Abram-se as do coração.


Acorda, minha dozela,
Soltemos da infância o véu...
Se nós morremos, num beijo,
Acordaremos no céu!

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