Florbela Espanca I

FANATISMO

Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida.
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!
Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!
“Tudo no mundo é frágil, tudo passa... ”
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!
E, olhos postos em ti, digo de rastros:
“Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim! ... ”

HORAS RUBRAS

Horas profundas, lentas e caladas
Feitas de beijos sensuais e ardentes,
De noites de volúpia, noites quentes
Onde há risos de virgens desmaiadas...
Oiço as olaias rindo desgrenhadas...
Tombam astros em fogo, astros dementes,
E do luar os beijos languescentes
São pedaços de prata p’las estradas...
Os meus lábios são brancos como lagos...
Os meus braços são leves como afagos,
Vestiu-os o luar de sedas puras...
Sou chama e neve branca e misteriosa...
e sou, talvez, na noite voluptuosa,
Ó meu Poeta, o beijo que procuras!

EU

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...
Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida! ...
Sou aquela que passa a ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...
Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!

CASTELÃ DE TRISTEZA

Altiva e couraçada de desdém,
Vivo sozinha em meu castelo: a Dor!
Passa por ele a luz de todo o amor...
E nunca em meu castelo entrou alguém!
Castela da Tristeza, vês?... A quem?...
— E o meu olhar é interrogador —
Perscruto ao longe as sombras do sol-pôr...
Chora o silêncio... nada... ninguém vem...
Castelã da Tristeza, porque choras
Lendo, toda de branco, um livro de horas,
À sombra rendilhada dos vitrais?...
À noite, debruçada, p’las ameias,
Porque rezas baixinho?... Porque anseias?...
Que sonho afagam tuas mãos reais?...

TORTURA

Tirar dentro do peito a Emoção,
A lúcida Verdade, o Sentimento!
— E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vento! ...
Sonhar um verso de alto pensamento,
E puro como um ritmo de oração!
— E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento...
São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que iludo os outros, com que minto!
Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto! !

A MINHA DOR

A minha Dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.
Os sinos têm dobres de agonia
Ao gemer, comovidos, o seu mal...
E todos têm sons de funeral
Ao bater horas, no correr dos dias...
A minha Dor é um convento. Há lírios
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca os viu alguém!
Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém ouve... ninguém vê... ninguém...

SE TU VIESSES VER-ME...

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...
Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...
Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri
E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

A TUA VOZ NA PRIMAVERA

Manto de seda azul, o céu reflete
Quanta alegria na minha alma vai!
Tenho os meus lábios úmidos: tomai
A flor e o mel que a vida nos promete!
Sinfonia de luz meu corpo não repete
O ritmo e a cor dum mesmo beijo... olhai!
Iguala o sol que sempre às ondas cai,
Sem que a visão dos poentes se complete!
Meus pequeninos seios cor-de-rosa,
Se os roça ou prende a tua mão nervosa,
Têm a firmeza elástica dos gamos...
Para os teus beijos, sensual, flori!
E amendoeira em flor, só ofereço os ramos,
Só me exalto e sou linda para ti!

REALIDADE

Em ti o meu olhar fez-se alvorada
E a minha voz fez-se gorgeio de ninho...
E a minha rubra boca apaixonada
Teve a frescura pálida do linho...
Embriagou-me o teu beijo como um vinho
Fulvo de Espanha, em taça cinzelada...
E a minha cabeleireira desatada
Pôs a teus pés a sombra dum caminho...
Minhas pálpebras são cor de verbena,
Eu tenho os olhos garços, sou morena,
E para te encontrar foi que eu nasci...
Tens sido vida fora o meu desejo
E agora, que te falo, que te vejo,
Não sei se te encontrei... se te perdi...

SÚPLICA

Olha para mim, amor, olha para mim;
Meus olhos andam doidos por te olhar!
Cega-me com o brilho de teus olhos
Que cega ando eu há muito por te amar.
O meu colo é arminho branco imaculado
Duma brancura casta que entontece;
Tua linda cabeça loira e bela
Deita em meu colo, deita e adormece!
Os meus braços são brancos como o linho
Quando os cerro de leve, docemente...
Oh! deixa-me prender-te e enlear-te
Nessa cadeia assim eternamente! ...
Vem para mim, amor... Ai não desprezes
A minha adoração de escrava louca!
Só te peço que deixes exalar
Meu último suspiro na tua boca! ...

A MULHER I

Um ente de paixão e sacrifício,
De sofrimento cheio, eis a mulher!
Esmaga o coração dentro do meu peito,
E nem te doas coração, sequer!
Sê forte, corajoso, não fraquejes
Na luta; sê em Vênus sempre Marte;
Sempre o mundo é vil e infame o os homens
Se te sentem gemer hão de pisar-te!
Se às vezes tu fraquejas, pobrezinho,
Essa brancura ideal de puro arminho
Eles deixam pra sempre maculada;
E gritam então os vis: “Olhem, vejam
É aquela a infame! ” e apedrejam
A pobrezita, a triste, a desgraçada!

A MULHER II

Ó mulher! Como és fraca e como és forte!
Como sabes ser doce e desgraçada!
Como sabes fingir quando em teu peito
A tua alma se estorce amargurada!
Quantas morrem saudosas duma imagem
Adorada que amaram doidamente!
Quantas e quantas almas endoidecem
Enquanto a boca ri alegremente!
Quanta paixão e amor às vezes têm
Sem nunca o confessarem a ninguém
Doces almas de dor e sofrimento!
Paixão que faria a felicidade
Dum rei; amor de sonho e de saudade,
Que se esvai e que foge num lamento!

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