Manuel Maria Barbosa du Bocage I

II [SONETO DO EPITÁFIO]

Lá quando em mim perder a humanidade
Mais um daqueles, que não fazem falta,
Verbi-gratia — o teólogo, o peralta,
Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade:

Não quero funeral comunidade,
Que engrole "sub-venites" em voz alta;
Pingados gatarrões, gente de malta,
Eu também vos dispenso a caridade:

Mas quando ferrugenta enxada idosa
Sepulcro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:

"Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
Passou vida folgada, e milagrosa;
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro".


III [SONETO DO MEMBRO MONSTRUOSO]

Esse disforme, e rígido porraz
Do semblante me faz perder a cor:
E assombrado d'espanto, e de terror
Dar mais de cinco passos para trás:

A espada do membrudo Ferrabrás
De certo não metia mais horror:
Esse membro é capaz até de pôr
A amotinada Europa toda em paz.

Creio que nas fodais recreações
Não te hão de a rija máquina sofrer
Os mais corridos, sórdidos cações:

De Vênus não desfrutas o prazer:
Que esse monstro, que alojas nos calções,
É porra de mostrar, não de foder.


IV [SONETO (DES)PEJADO]

Num capote embrulhado, ao pé de Armia,
Que tinha perto a mãe o chá fazendo,
Na linda mão lhe foi (oh céus) metendo
O meu caralho, que de amor fervia:

Entre o susto, entre o pejo a moça ardia;
E eu solapado os beijos remordendo,
Pela fisga da saia a mão crescendo
A chamada sacana lhe fazia:

Entra a vir-se a menina... Ah! que vergonha!
"Que tens?" — lhe diz a mãe sobressaltada:
Não pode ela encobrir na mão langonha:

Sufocada ficou, a mãe corada:
Finda a partida, e mais do que medonha
A noite começou da bofetada.

[SONETO DE TODOS OS CORNOS]
[José Anselmo Correa Henriques]

Não lamentes, Alcino, o teu estado,
Corno tem sido muita gente boa;
Corníssimos fidalgos tem Lisboa,
Milhões de vezes cornos têm reinado.

Siqueu foi corno, e corno de um soldado:
Marco Antonio por corno perdeu a c'roa;
Anfitrião com toda a sua proa
Na Fábula não passa por honrado;

Um rei Fernando foi cabrão famoso
(Segundo a antiga letra da gazeta)
E entre mil cornos expirou vaidoso;

Tudo no mundo é sujeito à greta:
Não fiques mais, Alcino, duvidoso
Que isto de ser corno é tudo peta.


VII (4) [SONETO DO VELHO ESCANDALOSO]

Tu, oh demente velho descarado,
Escândalo do sexo masculino,
Que por alta justiça do Destino
Tens o impotente membro decepado:

Tu, que, em torpe furor incendiado
Sofres d'ímpia paixão ardor maligno,
E a consorte gentil, de que és indigno,
Entregas a infrutífero castrado:

Tu, que tendo bebido o méstruo imundo,
Esse amor indiscreto te não gasta
D'ímpia mulher o orgulho furibundo;

Em castigo do vício, que te arrasta,
Saiba a ínclita Lísia, e todo o mundo
Que és vil por gênio, que és cabrão, e basta.

IX [SONETO DA DONZELA ANSIOSA]

Arreitada donzela em fofo leito,
Deixando erguer a virginal camisa,
Sobre as roliças coxas se divisa
Entre sombras sutis pachacho estreito:

De louro pêlo um círculo imperfeito
Os papudos beicinhos lhe matiza;
E a branca crica, nacarada e lisa,
Em pingos verte alvo licor desfeito:

A voraz porra as guelras encrespando
Arruma a focinheira, e entre gemidos
A moça treme, os olhos requebrados:

Como é inda boçal, perde os sentidos:
Porém vai com tal ânsia trabalhando,
Que os homens é que vêm a ser fodidos.


X [SONETO DA ESCULTURA ESCANDALOSA]

Esquentado frisão, brutal masmarro
Girava em Santarém na pobre feira;
Eis que divisa ao longe em couva ceira
Seus bons irmãos seráficos de barro:

O bruto, que arremeda um boi de carro
Na carranca feroz, parte à carreira,
Os sagrados bonecos escaqueira,
E arranca de ufania um longo escarro:

N'alma o santo furor lhe arqueja, e berra;
Mas vós enchei-vos de íntimo alvoroço,
Povos, que do burel sofreis a guerra:

Que dos bonzos de barro o vil destroço
É presságio talvez de irem por terra
Membrudos fradalhões de carne e osso!


XI [SONETO DA CÓPULA ESCULPIDA]

Nesta, cuja memória esquece à Fama,
Feira, que de Santarém vem de ano em ano,
Jazia co'uma freira um franciscano;
Eram de barro os dois, de barro a cama:

Co'a mão, que à virgindade injúrias trama,
Pretendia o cabrão ferrar-lhe o pano;
Eis que um negro barrasco, um Frei Tutano
O espetáculo vê, que os rins lhe inflama:

"Irra! Vens me atiçar, gente danada!
Não basta a felpa dos buréis opacos,
Com que a carne rebelde anda ralada?"

"Fora, vis tentações, fora, velhacos!..."
Disse, e ao ríspido som de atroz patada
O escandaloso par converte em cacos.


XII [SONETO DO PRAZER MAIOR]

Amar dentro do peito uma donzela;
Jurar-lhe pelos céus a fé mais pura;
Falar-lhe, conseguindo alta ventura,
Depois da meia-noite na janela:

Fazê-la vir abaixo, e com cautela
Sentir abrir a porta, que murmura;
Entrar pé ante pé, e com ternura
Apertá-la nos braços casta e bela:

Beijar-lhe os vergonhosos, lindos olhos,
E a boca, com prazer o mais jucundo,
Apalpar-lhe de leve os dois pimpolhos:

Vê-la rendida enfim a Amor fecundo;
Ditoso levantar-lhe os brancos folhos;
É este o maior gosto que há no mundo.


XIII [SONETO DO PAU DECIFRADO]

É pau, e rei dos paus, não marmeleiro,
Bem que duas gamboas lhe lobrigo;
Dá leite, sem ser árvore de figo,
Da glande o fruto tem, sem ser sobreiro:

Verga, e não quebra, como zambujeiro;
Oco, qual sabugueiro tem o umbigo;
Brando às vezes, qual vime, está consigo;
Outras vezes mais rijo que um pinheiro:

À roda da raiz produz carqueja:
Todo o resto do tronco é calvo e nu;
Nem cedro, nem pau-santo mais negreja!

Para carvalho ser falta-lhe um U; [carualho]
Adivinhem agora que pau seja,
E quem adivinhar meta-o no cu.



XVII [SONETO DO PRAZER EFÊMERO]

Dizem que o rei cruel do Averno imundo
Tem entre as pernas caralhaz lanceta,
Para meter do cu na aberta greta
A quem não foder bem cá neste mundo:

Tremei, humanos, deste mal profundo,
Deixai essas lições, sabida peta,
Foda-se a salvo, coma-se a punheta:
Este prazer da vida mais jucundo.

Se pois guardar devemos castidade,
Para que nos deu Deus porras leiteiras,
Senão para foder com liberdade?

Fodam-se, pois, casadas e solteiras,
E seja isto já; que é curta a idade,
E as horas do prazer voam ligeiras! (7)


[SONETO AO VIL INSETO] [anônimo]

Enquanto a rude plebe alvoroçada
Do rouco vate escuta a voz de mouro,
Que do peito inflamado sai d'estouro
Por estreito bocal desentoada:

Não cessa a cantilena acigarrada
Do vil inseto, do mordaz besouro;
Que à larga se criou por entre o louro
De que a sábia Minerva está c'roada:

Enquanto o cego ateu, calvo da tinha,
Com parolas confunde alguns basbaques,
Salmeando a amatória ladainha:

Eu não me posso ter; cheio de achaques,
Cansado de lhe ouvir — "Bravo! Esta é minha!"
Cago sem me sentir, desando em traques.


[OUTRO SONETO AO VIL INSETO] [J. Franco]

Há junto do Parnaso um turvo lago,
Aonde em rãs existem transformados
Os trovistas de cascos esquentados,
Cérebro frouxo, ou de miolo vago:

Por mais infâmia sua, e mais estrago
Doou-lhe Febo os ânimos danados,
P'ra que exprimam em versos desasados
Os seus destinos vis, nos quais eu cago:

Aqui Bocage, vive, e d'aqui ralha,
E co'a tartárea língua pontiaguda
Bons e maus, maus e bons, tudo atassalha.

É vil inseto, e o gênio atroz não muda,
Bem como a escura cor não muda a gralha,
E o hediondo fedor não perde a arruda.


[SONETO AO PECADOR MORTO] [B. M. Curvo Semedo]

Morreu Bocage, sepultou-se em Goa!
Chorai, moças venais, chorai, pedantes,
O insulso estragador das consoantes,
Que tantos tempos aturdiu Lisboa!

Por aventuras mil obteve a c'roa
Que a fronte cinge dos heróis andantes;
Inda veio de climas tão distantes
À toa vegetar, versar à toa:

Este que vês, com olhos macerados,
Não é Bocage, não, rei dos brejeiros,
São apenas seus olhos descarnados:

Fugiu do cemitério aos companheiros:
Anda agora purgando seus pecados
Glosando aos cagaçais pelos outeiros.


[SONETO DO RETRATO MAL-FALADO] [anônimo]

Esqueleto animal, cara de fome,
De Timão, e chapéu à holandesa,
Olhos espantadiços, boca acesa,
D'onde o fumo, que sai, a todos some:

Milagre do Parnaso em fama e nome,
Em corpo galicado alma francesa,
Com voz medonha, língua portuguesa,
Que aos bocados a honra e brio come:

Toda a moça, que dele se confia,
É virgem no serralho do seu peito;
Janela, que se fecha, putaria!

Neste esboço o retrato tenho feito;
Eis o grande e fatal Manoel Maria,
Que até pintado perde o bom conceito.


XIX (9) [SONETO MAÇÔNICO]

Turba esfaimada, multidão canina,
Corja, que tem por deus ou Momo, ou Baco,
Reina, e decreta nos covis de Caco
Ignorância daqui, dali rapina:

Colhe de alto sistema e lei divina
Imaginário jus, com que encha o saco;
Textos gagueja em vão Doutor macaco
Por ouro, que promete alma sovina:

Círculo umbroso de venais pedantes,
Com torpe astúcia de maligna zorra
Usurpa nome excelso, e graus flamantes:

Ora mijei na súcia, inda que eu morra
Corno, arrocho, bambu nos elefantes,
Cujo vulto é de anões, a tromba é porra !


XX (10) [AUTO-RETRATO]

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno:

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura,
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno:

Devoto incensador de mil deidades,
(Digo de moças mil) num só momento
Inimigo de hipócritas, e frades:

Eis Bocage, em quem luz algum talento:
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia, em que se achou cagando ao vento.

XXI [SONETO DRAMÁTICO]

Na cena em quadra trágico-invernosa
Zaida se impingiu (fradesco drama!)
Apareceu depois, com sede à fama,
Tragédia mais igual, mais lastimosa:

O autor pranteia em frase aparatosa
Esfaqueado arrais, pimpão d'Alfama;
Corno o protagonista, e puta a dama,
O machão é Simeão, e a mula é Rosa:

Espicha o rabo (eu tremo ao proferi-lo)
Espicha o rabo ali o herói na rua,
Qual Muratão nos areais do Nilo!

Elmiro na tarefa contínua,
Já todos pela escolha, e pelo estilo
Rosnam que a nova peça é obra sua.

Nenhum comentário: