Álvares de Azevedo V

Meu desejo


Meu desejo? era ser a luva branca
Que essa tua gentil mãozinha aperta:
A camélia que murcha no teu seio,
O anjo que por te ver do céu deserta....


Meu desejo? era ser o sapatinho
Que teu mimoso pé no baile encerra....
A esperança que sonhas no futuro,
As saudades que tens aqui na terra....


Meu desejo? era ser o cortinado
Que não conta os mistérios do teu leito;
Era de teu colar de negra seda
Ser a cruz com que dormes sobre o peito.


Meu desejo? era ser o teu espelho
Que mais bela te vê quando deslaças
Do baile as roupas de escomilha e flores
E mira-te amoroso as nuas graças!


Meu desejo? era ser desse teu leito
De cambraia o lençol, o travesseiro
Com que velas o seio, onde repousas,
Solto o cabelo, o rosto feiticeiro....


Meu desejo? era ser a voz da terra
Que da estrela do céu ouvisse amor!
Ser o amante que sonhas, que desejas
Nas cismas encantadas de languor!



Meu sonho


EU


Cavaleiro das armas escuras,
Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sanguenta na mão?
Porque brilham teus olhos ardentes
E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração?


Cavaleiro, quem és? o remorso?
Do corcel te debruças no dorso....
E galopas do vale através...
Oh! da estrada acordando as poeiras
Não escutas gritar as caveiras
E morder-te o fantasma nos pés?


Onde vais pelas trevas impuras,
Cavaleiro das armas escuras,
Macilento qual morto na tumba?...
Tu escutas.... Na longa montanha
Um tropel teu galope acompanha?
E um clamor de vingança retumba?


Cavaleiro, quem és? — que mistério,
Quem te força da morte no império
Pela noite assombrada a vagar?


O FANTASMA


Sou o sonho de tua esperança,
Tua febre que nunca descansa,
O delírio que te há de matar!...


Minha desgraça


Minha desgraça, não, não é ser poeta,
Nem na terra de amor não ter um eco,
E meu anjo de Deus, o meu planeta
Tratar-me como trata-se um boneco....


Não é andar de cotovelos rotos,
Ter duro como pedra o travesseiro....
Eu sei.... O mundo é um lodaçal perdido
Cujo sol (quem mo dera!) é o dinheiro....


Minha desgraça, ó cândida donzela,
O que faz que o meu peito assim blasfema,
E' ter para escrever todo um poema,
E não ter um vintém para uma vela.



Na minha terra


Laisse-toi donc aimer! Oh! l'amour c'est la vie.
C'est tout ce qu'on regrette et tout ce qu'on envie,
Quand on voit sa jeunesse au couchant décliner.

.....................................................

La beauté c'est le front, l'amour c'est la couronne,
Laisse-toi couronner!
V. HUGO.


I


Amo o vento da noite sussurrante
A tremer nos pinheiros
E a cantiga do pobre caminhante
No rancho dos tropeiros;


E os monótonos sons de uma viola
No tardio verão,
E a estrada que além se desenrola
No véu da escuridão;


A restinga d'areia onde rebenta
O oceano a bramir,
Onde a lua na praia macilenta
Vem pálida luzir;


E a névoa e flores e o doce ar cheiroso
Do amanhecer na serra,
E o céu azul e o manto nebuloso
Do céu de minha terra;


E o longo vale de florinhas cheio
E a névoa que desceu,
Como véu de donzela em branco seio,
As estrelas do céu.



II


Não é mais bela, não, a argêntea praia
Que beija o mar do sul,
Onde eterno perfume a flor desmaia
E o céu é sempre azul;


Onde os serros fantásticos roxeiam
Nas tardes de verão
E os suspiros nos lábios incendeiam
E pulsa o coração!


Sonho da vida que doirou e azula
A fada dos amores,
Onde a mangueira ao vento tremula
Sacode as brancas flores,


E é saudoso viver nessa dormência
Do lânguido sentir,
Nos enganos suaves da existência
Sentindo-se dormir;


(...)



III


Quando o gênio da noite vaporosa
Pela encosta bravia
Na laranjeira em flor toda orvalhosa
De aroma se inebria,


No luar junto à sombra recendente
De um arvoredo em flor,
Que saudades e amor que influi na mente
Da montanha o frescor!


E quando à noite no luar saudoso
Minha pálida amante
Ergue seus olhos úmidos de gozo,
E o lábio palpitante...


Namoro a cavalo


Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça
Que rege minha vida malfadada
Pôs lá no fim da rua do Catete
A minha Dulcinéia namorada.


Alugo (três mil réis) por uma tarde
Um cavalo de trote (que esparrela!)
Só para erguer meus olhos suspirando
À minha namorada na janela...


Todo o meu ordenado vai-se em flores
E em lindas folhas de papel bordado
Onde eu escrevo trêmulo, amoroso,
Algum verso bonito... mas furtado.


Morro pela menina, junto dela
Nem ouso suspirar de acanhamento...
Se ela quisesse eu acabava a história
Como toda a Comédia — em casamento.


Ontem tinha chovido... que desgraça!
Eu ia a trote inglês ardendo em chama,
Mas lá vai senão quando uma carroça
Minhas roupas tafuis encheu de lama...


Eu não desanimei. Se Dom Quixote
No Rocinante erguendo a larga espada
Nunca voltou de medo, eu, mais valente,
Fui mesmo sujo ver a namorada...


Mas eis que no passar pelo sobrado
Onde habita nas lojas minha bela
Por ver-me tão lodoso ela irritada
Bateu-me sobre as ventas a janela...


O cavalo ignorante de namoros
Entre dentes tomou a bofetada,
Arrepia-se, pula, e dá-me um tombo
Com pernas para o ar, sobre a calçada...


Dei ao diabo os namoros. Escovado
Meu chapéu que sofrera no pagode
Dei de pernas corrido e cabisbaixo
E berrando de raiva como um bode.


Circunstância agravante. A calça inglesa
Rasgou-se no cair de meio a meio,
O sangue pelas ventas me corria
Em paga do amoroso devaneio!...


No mar


Les étoiles s'allument au ciel, et la brise du soir
erre doucement parmi les fleurs: rêvez, chantez et
soupirez.
GEORGE SAND.


Era de noite — dormias,
Do sonho nas melodias,
Ao fresco da viração;
Embalada na falua,
Ao frio clarão da lua,
Aos ais do meu coração!


Ah! que véu de palidez
Da langue face na tez!
Como teus seios revoltos
Te palpitavam sonhando!
Como eu cismava beijando
Teus negros cabelos soltos!
Sonhavas? — eu não dormia;


A minh'alma se embebia
Em tua alma pensativa!
E tremias, bela amante,
A meus beijos, semelhante
Às folhas da sensitiva!


E que noite! que luar!
E que ardentias no mar!
E que perfumes no vento!
Que vida que se bebia
Na noite que parecia
Suspirar de sentimento!


Minha rola, ó minha flor,
Ó madressilva de amor!
Como eras saudosa então!
Como pálida sorrias
E no meu peito dormias
Aos ais do meu coração!


E que noite! que luar!
Como a brisa a soluçar
Se desmaiava de amor!
Como toda evaporava
Perfumes que respirava
Nas laranjeiras em flor!


Suspiravas? que suspiro!
Ai que ainda me deliro
Sonhando a imagem tua
Ao fresco da viração,
Aos ais do meu coração,
Embalada na falua!


Como virgem que desmaia,
Dormia a onda na praia!
Tua alma de sonhos cheia
Era tão pura, dormente,
Como a vaga transparente
Sobre seu leito de areia!


Era de noite — dormias,
Do sonho nas melodias,
Ao fresco da viração;
Embalada na falua,
Ao frio clarão da lua,
Aos ais do meu coração!

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